Eu digo boa noite ao motorista do ônibus e lhe entrego o papel sujo e amassado para que ele me libere a passagem na roleta. Arrasto-me até o fundo do coletivo, tropeçando e empurrando as pessoas que teimam em se prostrar na minha frente. É hora do rush, o ônibus está lotado de pessoas tão cansadas quanto eu. Cansadas de seus trabalhos, suas vidas, seus amores, seu vícios, suas fodas. Tem uma velha no ônibus que eu poderia jurar que assim que ela chegar em casa ela vai se matar, tamanha é sua cara de desilusão com a vida naquele abatedouro de porcos que tem a petulância de se chamar transporte público.
Quando consigo chegar no fundo do ônibus me dou conta, pela primeira vez em muitos anos, daquela janela enorme e da vista que ela me proporciona. Quase como um televisor em alta definição, vejo os carros, a pista, as motos, de modo extremamente visceral. Chego até a abrir um sorriso só de olhar toda aquela nova diversão que me surge e acabo, embasbacado, olhando para os carros que correm ali, quase encostando na carroceria do onibus. Volto a realidade quando ouço um com licença por favor em minha orelha. Peço desculpas e dou passagem para a velha. Fico com vontade de desejar boa morte para ela, mas tenho pena, já que ela anda se arrastando pior do que eu.
Volto a olhar a janela. Me dou conta então que nunca tinha reparado aquela vista por causa das propagandas que ali costumam ficar. Quanta coisa a gente perde, falo comigo mesmo em minha cabeça. As janelas laterais do onibus agora me parecem uma merda perto daquela, dantesca. Nem preocupo-me em me sentar no lugar vago que aparece ali perto. De repente avisto um importado japonês, branco, de estrutura grande e design arredondado. Os vidros, todos filmados dão uma aura soturna aquele carro. Fico olhando ele vir, em alta velocidade na direção do ônibus. Sinto a adrenalina fazer meu coração bater um pouco mais rápido. Parece que eu estou na pista e aquele carro vai me pegar. Ele chega a quase encostar no para-choque do ônibus, antes de freiar, mas freia bem em cima, quase tirando uma lasca da tinta. Estamos parados no sinal, eu olhando aquele carro importado, quando ele me pisca as duas luzes dianteiras. Automaticamente meu cérebro encara aquilo como algo normal, o sinal deve ter aberto e ele estava indicando ao motorista para ir logo. Olho para trás, para o corredor do ônibus, e o sinal está vermelho.
O carro branco pisca novamente quando volto com minha cabeça em sua direção. O filho da puta está falando comigo, não sei que merda ele quer dizer, mas é para mim, com certeza. O onibus volta a andar e o carro branco fica então distante, parado. Viro na esquina e o perco de vista. O onibus então para em um novo sinal. Vejo o carro fazer a curva e , em alta velocidade, vir na minha direção. É isso que você quer? Ficar correndo atrás desse onibus? Faço com as mãos um movimento como se o chamasse, o convidando a vir e estourar a traseira do ônibus. Eu seria o primeiro a morrer, mas foda-se, naquele momento não me importo com isso, só quero sentir o suor escorrer pelo rosto, o coração palpitar a ponto de me fazer tremer a voz, a respiração silenciar por alguns segundos. O carro acelera, com tudo, em minha direção. Ele não vacila, não falha. Os outros carros parecem abrir caminho para ele, como se fosse um Moisés dos acidentes de trânsito. Abra-se o mar que me separa da minha terra prometida e sagrada, ele grita com aqueles pneus afundando ainda mais a rua malfeita com asfalto vagabundo. O carro freia, em cima do onibus. Ouço o grito das rodas, lamentando-se pelo fato de não terem destroçado aquele gigante.
O carro agora pisca furiosamente. É um desafio para mim. Ele quer saber até onde eu quero ir. Com as minhas mãos simulo um impacto. Ele, lentamente vai chegando perto e encosta na lataria do ônibus, como se fosse um tapa nas costas de um amigo. O filho da puta está me testando. Olho para os lados, mas ninguém percebe aquilo. O carro encostara na gente e fizera tremer um pouco o veículo, mas ninguém vira aquilo. Todos aqueles outros passageiros, presos em suas ilusões, suas loucuras, seus ataques de ansiedade e de pânico, deveriam estar em hospícios, tomando remédios, amarrados em camas. Animais idiotas, todos perdiam aquele espetáculo pois estavam estuporados em suas próprias confusões mentais.
O carro pisca as luzes novamente para mim. Eu grito que aqueles imbecis não sabem o que realmente na vida é importante, mas que ele continue o seu show, por favor. A armação de metal sorri para a mim, tal qual um monstro encarcerado que se vê livre depois de muito tempo. Aquela é sua selva, seu armário, sua planície. É sua casa. Ele respira aquela carniça queimada liberada pelos escapamentos. Ele pisca duas vezes, e eu entendo, chegou a hora do último ato. Ele deixa meu ônibus seguir. Toma sua distância, assume sua posição de ataque.
O coletivo chega no meu ponto. Nem havia reparado que havia chegado no meu ponto. Num movimento já mecânico realizado pelo meu cérebro, meus pés acabam indo em direção a porta. Fico ali, indeciso, não sabendo se escolho descer ou ficar e esperar o impacto. Vejo o carro vir. A velha, com cara de quem quer morrer me pede licença. Déjà vu. Por que essa velha de novo? Olho para minhas roupas. São outras. Quanto tempo se passou? Dias, meses, anos? Como eu estava ali, com aquela velha novamente me pedindo licença? O carro vem com tudo na direção do onibus. Eu desço, pressionado pela multidão que quer ir para suas casas e viver suas vidas medíocres. O impacto do carro com o ônibus faz com que o vidro se despedace, a lataria amasse. Eu grito, na catarse do momento. Ninguém me ouve. Ninguém repara naquilo. Meus olhos piscam e eu volto a realidade. O continuísmo está começando a me fazer ver coisas. A velha me agradece. Eu, em silêncio, dirijo-me de volta para casa. Acabou.

D.