Uma mão bem enrugada fecha a torneira do chuveiro e com isso faz as gotas pararem de cair. O homem velho pega a toalha, se seca e veste-se, como faz todos os dias. O sol desce devagar enquanto o ele se encaminha para a sala, senta na poltrona e acende o charuto. Sofre de um dilema no seu interior, quer beber seu whisky 18 anos, mas sabe que a mulher não gosta quando ele faz isso. Começa a garrafa e não termina enquanto sobrar gota, é o que ela diz. A velha saiu pro pilates ou qualquer caralho, ele pensa, e então decide beber um copinho. Ele lutou na ditadura, sofre até hoje com isso, foi chamado de maldito, assassino, mas pro inferno, só estava fazendo seu trabalho construindo um país melhor, eu mereço esse copo porra, mereço sim.

Enche até a boca do copo, sem gelo nem nada. O modo certo a ser tomado um bom whisky. Saboreia, deixa o sabor expandir em sua boca, se sente vivo naquela rotina morta. Acaba em pouco tempo o copo e enche outro. E outro. Quando vê a garrafa se foi. Mas ainda sinto sede, pros caralhos, to com sede. Muita sede. Busca nos armários outra garrafa. Abre uma vodka, um licor, um vinho, todos magicamente vazios. Sente-se nervoso, sente sede, quer beber. Precisa disso. Abre a geladeira e não tem água, coca cola, suco de laranja, nada. Nem leite, porra, velha esquecida, vou dar uns tabefes nela quando chegar.

Sente então a pressão na barriga. A sede e a vontade de vomitar misturam-se no corpo do homem que já não sabe mais o que fazer, que acaba correndo então para o banheiro. Vomita de um jeito estranho. Não expeliu bolo alimentar, bilis, nada disso. Apenas whisky, puro, 18 anos, malte nobre. Estranhou a cena, havia comido uma lasanha deliciosa pela manhã. Sente sede ainda. Mais do que antes. Vomita novamente, apenas o whisky, puro, 18 anos, engarrafado no seu interior. O enjoo, a sede e o medo dominam seu corpo. Não sabe mais o que fazer. Corre para a sala, para a porta, gira a maçaneta como um louco mas nada acontece. Está preso.

A vontade de vomitar aparece novamente. Corre para o banheiro e vomita whisky. Dá a descarga. O vaso transborda. Apenas whisky. Ele olha tremendo para tudo aquilo. As paredes começam a infiltrar e em pouco tempo estouram, destruindo os azulejos pintados, jorrando whisky pelo banheiro. O velho sai dali mas já era, a casa inteira vaza whisky. O litros da bebida batendo no seu joelho.

Quer sair dali, mas as portas não abrem, e ele está bem fraco depois de tanto vomitar. Sente sede. Ajoelha-se e bebe o whisky que escorre da parede. 18 anos.

Quanto mais bebe, mais sede sente. Não sabe mais como agir. O whisky já bate o pescoço. Numa última tentativa desesperada tenta nadar mas de alguma forma o líquido âmbar é mais denso que a água. Está preso. Como bom militar se acalma e encara a morte eminente face a face. Pelo menos vou tomar uns goles antes de morrer.

Dona Maria volta feliz do pilates. Se sente melhor após as sessões, a sua postura e respiração melhoraram. Já pensa no que fazer para o jantar quando abre a porta do apartamento. O whisky cai todo sobre ela, encharcando-a. Vê o marido jogado no chão, branco, afogado no whisky.

Grita um grito puro e maltado.

D.