Lembro até hoje da sala silenciosa, mesmo com a televisão ligada no programa de leilões. Do lado de fora, da varanda, nenhum som parecia passar pelo véu que separa nosso corpo da realidade nas horas altas da madrugada. Eu encarava o computador, piscando a pequena barra na tela branca e vazia.

Quase desistia, o sono começava me vencer. Quando o diabo apareceu. Estava vestindo o maldito paletó de risca de giz azul, chapéu coco e óculos escuros. O sorriso escroto, habitual, me fez olhar para seu rosto e bocejar. O tédio daquela conversa que fatalmente irá acontecer já me dominava. Comecei falando, como sempre:

– Que você quer?

Ele não me respondeu pronto. Nunca o fazia, hábito esse que me irritava constantemente. Ele tirou do bolso um maço de cigarros, tragou e então me respondeu, com a fumaça saindo-lhe pela boca, como se só o ar sujo de nicotina e veneno pudesse carregar suas palavras.

– Vim ver um amigo. Não posso?

– Você não tem amigos, mas sim sócios e inimigos. O que você quer, cara? Fala logo, pois estou querendo trabalhar aqui.

Ele levantou-se e ficou olhando as estátuas em cima da estante. Parecia absorto naquela tarefa, como se estivesse me esquecido. Tragou novamente e me respondeu.

– Eu tenho amigos. Você é amigo. Não me quer mal e conversa comigo. É tudo o que preciso. Vim em paz.

– Para de me enrolar, porra. Se veio para conversar mesmo, pode ir embora. Adeus.

Lembro que me levantei, passei ao seu lado e me dirigi a cozinha. Peguei um copo d’água para tentar dar um ânimo, que já se esvaia no sono. Ouvi o vento fazer a janela tremer. O filho da puta ainda não tinha ido embora, e eu sabia que quando virasse ele estaria me esperando. Assim que girei, ele estava sentado na mesa no meio da cozinha.

– Tudo bem, posso ter vindo procurar meu sócio, e não um amigo. Eu posso te ajudar no problema da escrita. Posso fazer você escrever como um prêmio Nobel.

– Prefiro pedir ajuda das Musas a sua ajuda.

Voltei para a sala, e ele já me esperava lá. Lembro que sempre gostei desse truque dele.

– Eu sei que você já pediu ajuda a elas, mas não foi atendido. Esqueça essas crendices antigas, Diogo, e deixe eu lhe ajudar.

– Crendices antigas? Você é a porra de uma crendice antiga.

– Mas estou ativo no mercado. Elas não. Deixa eu te ajudar, você sabe que cumpra meus tratos.

Eu me recordava. Nas duas semanas anteriores tinha sofrido as merdas do que ele me tinha proposto. Conseguira, sem esforços, o que queria, mas sempre acabava me fodendo por causa disso. Com o diabo parecia que tudo tinha que vir com uma lembrancinha escrota e frustrante. Fora ele que inventara as reações para as ações.

– Por que você escreve? Sério, é pela fama, pelos prêmios? Dinheiro?

– Faço porque gosto. Quero inspirar e divertir as pessoas.

– Então é pela fama. Deixa eu te ajudar com isso.

– Não é pela fama. Não é tão efêmero assim.

Eu sabia, que no fundo, também era pela fama, pelo glamour da parada. Ele também sabia disso, mas não insistiu nesse ponto. Queria ganhar aquela negociação.

– Você sabe meus termos. Uma mão lava a outra. Você escreve um conto sobre mim, me põe de personagem em um dos seus livros, e eu te dou o que você quer. Simples assim.

– Porra, tá muito frouxo esse seu contrato. Eu te dou pouca coisa, você me dá o mundo. Além do que, como você vai me tornar um escritor? Vai me dar criatividade? Ou vou escrever qualquer merda e você vai me dar o que prometeu?

– Não faço milagres, você sabe disso. Você tem um certo talento, só farei esse talento se desenvolver um pouco mais. E o resto acontece naturalmente.  Editora, prêmios, Bienal e etc.

Levantei e fui para a varanda. Fiquei olhando o vazio da rua. Nenhuma vivalma passava na rua. Eu olhava para todos aqueles montes de concreto, para as enormes favelas, tentando ganhar alguma segurança. No entanto a decisão era minha, sozinho ali na madrugada.

– Como eu aceito o contrato?

O diabo levantou-se. Nunca ficava por perto depois de fechar seus negócios e antes mesmo da assinatura do contratante, ele se esvanecia.

– Escreva sobre mim. Qualquer coisa. Depois, deixe a magia do negócio fluir naturalmente.

Ele falou os seus termos e sumiu, deixando apenas o cheiro do cigarro no ar. Eu sentei no sofá, pensando na oferta. Acabei adormecendo. Pensei no acordo durante um ano. Achei melhor aceitar e assinar o contrato.

D.