Eu decido onde tudo começa. então assim que tenho a ideia a porta abre, violenta, e eu a atravesso a passos largos, batendo logo em seguida ela atrás de mim. Sento-me em frente a mesa localizada no centro da sala, que tem em cima dela somente uma máquina de escrever e o fluxo que sai dá minha cabeça já transportasse para os meus dedos. O barulho das teclas que soam como os dentes de batendo por causa do bruxismo começa a fazer flutuar na sala as letras, uma a uma. Logo o ar já está tomado pelo conto e esses tipos formam pequenas nuvens, tornando o ato de respirar algo pesado e trabalhoso.
Logo meu cérebro não conseguirá controlar minha respiração e ela só funcionará de forma consciente, portanto eu começarei a controlar minha respiração enquanto minha psique assume o papel de controlar o conto de forma inconsciente. Não serei mais o autor dessas palavras, linhas, parágrafos.
Também não sei quem será o dono dessa propriedade intelectual. O leitor terá sua parte na construção, é claro, pois não existe conto sem leitores. As personagens talvez também assumam seu papel, em vista que através delas que se conta a história. Mas não existe um dono nessas paragens. Tudo parece ser de todos.
Controlar minha respiração é uma tarefa tão chata que durmo, sem me importar de botar minha vida em risco. Fecho os olhos por dois segundos, tempo suficiente para que eu veja pontes se destroçarem e pessoas correrem em desespero. Acordo quando uma palavra bate, violenta, em minha testa. Tenho agora um corte em meu supercílio, que sangra, de pouco em pouco, mas sangra. Em poucos minutos meu olho direito ganha uma película vermelha e começo a enxergar o mundo atrás do véu de sangue. Agora além de respirar tenho que me preocupar com os pontos que irei tomar assim que chegar no hospital.
Mesmo assim, meus dedos não param; não se importam com nada que não seja relacionada a história que digitam. Durante o processo tenho certos vislumbres do que acontece no conto. Vejo uma pessoa abrindo uma porta, fumaça e sangue. Acho que antes de cortar meu olho não havia sangue, mas sei que isso vai cair bem na história. E quando digo cair vejo que literalmente algumas gotas mancham a folha. Todo conto precisa de drama.
Vejo o tempo passar, tão lentamente que a gravidade parece não existir. Olho de relance para o chão e vejo o quanto de sangue já escorreu de meu supercílio. Creio que o corte seja maior do que pensei. Agora entendo porque respirar está tão difícil, deve estar faltando sangue em meu corpo. Na inevitabilidade da morte começo a rir alto da ironia, na qual o autor morre, mas como para tudo que morre deve nascer algo novo, vejo as letras formando o conto. Deve estar no fim, acredito eu. Por curiosidade inclino-me para frente, para ler alguma das linhas, e nisso percebo que minhas mãos nem mais se mexem, e sim a máquina de escrever que está fazendo tudo sozinha, como se meu cérebro já tivesse enviado todos os comandos necessários. Leio o primeiro parágrafo e percebo que tudo começou quando abri aquela porta. O texto não é meu, como todos da minha vida, mas com a constatação posso agora perceber. Sou imortal, mas mesmo assim, terei de morrer.

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