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Esse é uma história de amor, com uma traição e uma vingança mortal de quem foi traído.
Como um monstro colérico, a casa se desfez em sua cabeça. A laje rachando seu crânio, a viga estourando seu fêmur, o umbral esmagando suas costelas. No momento que todas as rachaduras convergiram na destruição do imóvel, ele morria soterrado em pedaços de massa, tinta, cimento, tijolos, angústia e tristeza. Antes do fechar final dos olhos, após mais de 20 minutos esperando a morte enquanto respirava terra e podridão, sentindo as dores dos ferimentos, os lapsos de memória vinham azucriná-lo enquanto ele, vendo essas recordações, arrependia-se de não ter vivido direito, e dos erros que o levariam a morte inevitável que se daria dali há pouco.
A casa era quase nova e tinha pouco tempo que mandara construí-la do nada, com a ajuda de um amigo arquiteto que fizera o projeto e arranjara os tramites para seguir com a obra. Após seis meses de construção, lá estava seu lar.
Com o carinho que se toca uma amante pela primeira vez, ele abriu devagar a porta da sala, a principal, e entrou devagar sentindo o cheiro de novidade, que nada mais é do que um misto de cheiro de tinta com plástico. Um êxtase dominou seu corpo, e ele sentiu-se arrepiado, com seus poros eriçando-se a cada passo que dava ali dentro, conhecendo cada cômodo, cada quina, cada azulejo. Após olhar e a tudo sentir dirigiu-se ao banheiro e na privada defecou. Na sua cabeça a casa só era uma casa quando se pudesse cagar dentro dela. Com carinho, cagou e sentiu-se livre. Ouvia, em toda sua loucura e deslumbramento, um coral de anjos a cantar. Chorou, sentado ali na louça branca do banheiro. Tinha um lar.
Nos primeiros anos fora mobiliando a casa aos poucos, mas conseguira um êxito formidável levando-se em conta que não tinha uma mulher ao seu lado e é sabido por todos que somente mulheres sabem decorar, devidamente, uma casa, pois a maioria dos homens tem uma tendência forte ao mal gosto e a comprar coisas que não tem real utilidade para nada, como reproduções em miniatura de super-heróis, por exemplo. Ficava mais feliz a cada tempo que passava ali dentro, como se a casa fosse a ele uma amante. A mimava, a punha para dormir, lhe falava palavras bonitas. A amava.
Num outubro frio e chuvoso, alguns anos após a construção da casa, ele resolveu ir a um Happy Hour, depois do expediente, com os amigos. E como toda história de amor e ciúmes que se preze, surgiu a Outra. Devagar e de um jeito tímido, a Outra jamais chamava atenção de ninguém na rua, mas de algum modo chamou a dele. O bar estava lotado, e Ela encontrava-se no fim do balcão, escorada na parede, e ele, numa tentativa nervosa e pessimista, foi em cima d’Ela. A troca de drinques e o oferecimento de bebidas surgiu de forma habitual e sem maiores empecilhos, e os dois embarcaram em uma conversa fluida durante algum tempo. Tudo corria bem e ele, até o fim da noite, já havia conseguido alguns beijos da Outra além de seu telefone.
Inevitavelmente, dali há algumas semanas, acabaram por se encontrar novamente. Foram para um motel, na Avenida Brasil, e consumaram o ato diversas vezes, naquela noite. Pela primeira vez em muitos anos, a casa dormira sem ninguém dentro. Sozinha naquela noite chuvosa, ela chorou e surgiu o primeiro vazamento, bem pequeno, uma bolha mínima, no teto da sala.
Ele chegou em casa, no outro dia, e entendeu o que significava aquela bolha. Falou que tinha ficado até mais tarde no trabalho e resolvera dormir lá, pois a rua era perigosa de madrugada. Pediu desculpas e falou que dá próxima vez avisaria. Nunca mais dormiu fora de casa, mas isso não impediu os seus encontros com a Outra. Passava horas fora de casa e voltava apenas para dormir e descansar. Tinha vezes que chegava no meio da madrugada. Cada vez mais dava atenção para sua casa, chegando ao ponto de até deixar de comprar móveis e embelezá-la. Pequenos vazamentos surgiam, mas em lugares escondidos, como atrás de armários, embaixo do sofá, pois a casa chorava e sofria, mas sempre escondendo a tristeza, pensando que tudo aquilo não passaria de uma fase, e que logo ele voltaria a lhe dar presentes, mimá-la e amá-la.
Um dia, no chuveiro, ele cantando uma música de amor, e a casa achando que era para ela, feliz da vida, quando ele falou o nome da Outra. A água do chuveiro imediatamente passou de fria para quente, a ponto de quase chegar a fazer queimaduras na pele do homem. E então, todos os dias passaram a ser um inferno. Discutiam, ele gritando dizendo que ela não podia lhe satisfazer todas as suas necessidades, que não lhe dava o amor em troca do que ele vivia oferecendo. Ela, abandonando de vez o choro silencioso, inundava as paredes com vazamentos, além de fazer com que as portas batessem violentamente nas noites em que ele lá dormia, chegando até a quebrar os vidros da janela, quando os dois se meteram em uma discussão que passou dos limites, onde ele chegou a agredi-la, tirando os quadros a força da parede e estragando a tinta, deixando as cicatrizes.
A situação ficou impossível de se continuar, no dia que ele chegou, com um anel de noivado na mão, dizendo que estava empacotando as coisas pois iria se mudar para a casa d’Ela. Demorou dois dias para encaixotar tudo. Na noite anterior a mudança, quando ele estava dormindo no chão, a casa resolveu dar um basta.
Ele não chegou a ouvir as vigas se dobrando. Só acordou quando a primeira porta, a do banheiro, arrebentou numa chuva de pequenas farpas de madeira. Como estava na sala, longe da porta, nenhuma o atingiu, mas o barulho foi o bastante para acordá-lo. Ele levantou-se, já com o tom de voz alto, gritando. Uma parede então estourou e ele acabou levando um direto de um pedaço de reboco na cara. Caiu de joelhos no chão, com a boca sangrando. Um azulejo então pulou do chão, acertando seu queixo e seu nariz. Abriu-se um corte, do queixo a testa, abrindo uma parte de seus lábios. Tudo começou a desmoronar, num ataque de violência do ciúmes da casa.
No outro dia, pela manhã, o caminhão de mudanças chegara, e, sem encontrar a casa no endereço citado, ligou para o homem, já há muito morto debaixo dos destroços e escombros. Sem resposta, pois o celular havia também sido destruído, eles ligaram para o segundo telefone da lista. A Outra atendeu e dirigiu-se para a rua. Viu os escombros e gritou.

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Eu decido onde tudo começa. então assim que tenho a ideia a porta abre, violenta, e eu a atravesso a passos largos, batendo logo em seguida ela atrás de mim. Sento-me em frente a mesa localizada no centro da sala, que tem em cima dela somente uma máquina de escrever e o fluxo que sai dá minha cabeça já transportasse para os meus dedos. O barulho das teclas que soam como os dentes de batendo por causa do bruxismo começa a fazer flutuar na sala as letras, uma a uma. Logo o ar já está tomado pelo conto e esses tipos formam pequenas nuvens, tornando o ato de respirar algo pesado e trabalhoso.
Logo meu cérebro não conseguirá controlar minha respiração e ela só funcionará de forma consciente, portanto eu começarei a controlar minha respiração enquanto minha psique assume o papel de controlar o conto de forma inconsciente. Não serei mais o autor dessas palavras, linhas, parágrafos.
Também não sei quem será o dono dessa propriedade intelectual. O leitor terá sua parte na construção, é claro, pois não existe conto sem leitores. As personagens talvez também assumam seu papel, em vista que através delas que se conta a história. Mas não existe um dono nessas paragens. Tudo parece ser de todos.
Controlar minha respiração é uma tarefa tão chata que durmo, sem me importar de botar minha vida em risco. Fecho os olhos por dois segundos, tempo suficiente para que eu veja pontes se destroçarem e pessoas correrem em desespero. Acordo quando uma palavra bate, violenta, em minha testa. Tenho agora um corte em meu supercílio, que sangra, de pouco em pouco, mas sangra. Em poucos minutos meu olho direito ganha uma película vermelha e começo a enxergar o mundo atrás do véu de sangue. Agora além de respirar tenho que me preocupar com os pontos que irei tomar assim que chegar no hospital.
Mesmo assim, meus dedos não param; não se importam com nada que não seja relacionada a história que digitam. Durante o processo tenho certos vislumbres do que acontece no conto. Vejo uma pessoa abrindo uma porta, fumaça e sangue. Acho que antes de cortar meu olho não havia sangue, mas sei que isso vai cair bem na história. E quando digo cair vejo que literalmente algumas gotas mancham a folha. Todo conto precisa de drama.
Vejo o tempo passar, tão lentamente que a gravidade parece não existir. Olho de relance para o chão e vejo o quanto de sangue já escorreu de meu supercílio. Creio que o corte seja maior do que pensei. Agora entendo porque respirar está tão difícil, deve estar faltando sangue em meu corpo. Na inevitabilidade da morte começo a rir alto da ironia, na qual o autor morre, mas como para tudo que morre deve nascer algo novo, vejo as letras formando o conto. Deve estar no fim, acredito eu. Por curiosidade inclino-me para frente, para ler alguma das linhas, e nisso percebo que minhas mãos nem mais se mexem, e sim a máquina de escrever que está fazendo tudo sozinha, como se meu cérebro já tivesse enviado todos os comandos necessários. Leio o primeiro parágrafo e percebo que tudo começou quando abri aquela porta. O texto não é meu, como todos da minha vida, mas com a constatação posso agora perceber. Sou imortal, mas mesmo assim, terei de morrer.

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