Uma mão bem enrugada fecha a torneira do chuveiro e com isso faz as gotas pararem de cair. O homem velho pega a toalha, se seca e veste-se, como faz todos os dias. O sol desce devagar enquanto o ele se encaminha para a sala, senta na poltrona e acende o charuto. Sofre de um dilema no seu interior, quer beber seu whisky 18 anos, mas sabe que a mulher não gosta quando ele faz isso. Começa a garrafa e não termina enquanto sobrar gota, é o que ela diz. A velha saiu pro pilates ou qualquer caralho, ele pensa, e então decide beber um copinho. Ele lutou na ditadura, sofre até hoje com isso, foi chamado de maldito, assassino, mas pro inferno, só estava fazendo seu trabalho construindo um país melhor, eu mereço esse copo porra, mereço sim.

Enche até a boca do copo, sem gelo nem nada. O modo certo a ser tomado um bom whisky. Saboreia, deixa o sabor expandir em sua boca, se sente vivo naquela rotina morta. Acaba em pouco tempo o copo e enche outro. E outro. Quando vê a garrafa se foi. Mas ainda sinto sede, pros caralhos, to com sede. Muita sede. Busca nos armários outra garrafa. Abre uma vodka, um licor, um vinho, todos magicamente vazios. Sente-se nervoso, sente sede, quer beber. Precisa disso. Abre a geladeira e não tem água, coca cola, suco de laranja, nada. Nem leite, porra, velha esquecida, vou dar uns tabefes nela quando chegar.

Sente então a pressão na barriga. A sede e a vontade de vomitar misturam-se no corpo do homem que já não sabe mais o que fazer, que acaba correndo então para o banheiro. Vomita de um jeito estranho. Não expeliu bolo alimentar, bilis, nada disso. Apenas whisky, puro, 18 anos, malte nobre. Estranhou a cena, havia comido uma lasanha deliciosa pela manhã. Sente sede ainda. Mais do que antes. Vomita novamente, apenas o whisky, puro, 18 anos, engarrafado no seu interior. O enjoo, a sede e o medo dominam seu corpo. Não sabe mais o que fazer. Corre para a sala, para a porta, gira a maçaneta como um louco mas nada acontece. Está preso.

A vontade de vomitar aparece novamente. Corre para o banheiro e vomita whisky. Dá a descarga. O vaso transborda. Apenas whisky. Ele olha tremendo para tudo aquilo. As paredes começam a infiltrar e em pouco tempo estouram, destruindo os azulejos pintados, jorrando whisky pelo banheiro. O velho sai dali mas já era, a casa inteira vaza whisky. O litros da bebida batendo no seu joelho.

Quer sair dali, mas as portas não abrem, e ele está bem fraco depois de tanto vomitar. Sente sede. Ajoelha-se e bebe o whisky que escorre da parede. 18 anos.

Quanto mais bebe, mais sede sente. Não sabe mais como agir. O whisky já bate o pescoço. Numa última tentativa desesperada tenta nadar mas de alguma forma o líquido âmbar é mais denso que a água. Está preso. Como bom militar se acalma e encara a morte eminente face a face. Pelo menos vou tomar uns goles antes de morrer.

Dona Maria volta feliz do pilates. Se sente melhor após as sessões, a sua postura e respiração melhoraram. Já pensa no que fazer para o jantar quando abre a porta do apartamento. O whisky cai todo sobre ela, encharcando-a. Vê o marido jogado no chão, branco, afogado no whisky.

Grita um grito puro e maltado.

D.

Lembro até hoje da sala silenciosa, mesmo com a televisão ligada no programa de leilões. Do lado de fora, da varanda, nenhum som parecia passar pelo véu que separa nosso corpo da realidade nas horas altas da madrugada. Eu encarava o computador, piscando a pequena barra na tela branca e vazia.

Quase desistia, o sono começava me vencer. Quando o diabo apareceu. Estava vestindo o maldito paletó de risca de giz azul, chapéu coco e óculos escuros. O sorriso escroto, habitual, me fez olhar para seu rosto e bocejar. O tédio daquela conversa que fatalmente irá acontecer já me dominava. Comecei falando, como sempre:

– Que você quer?

Ele não me respondeu pronto. Nunca o fazia, hábito esse que me irritava constantemente. Ele tirou do bolso um maço de cigarros, tragou e então me respondeu, com a fumaça saindo-lhe pela boca, como se só o ar sujo de nicotina e veneno pudesse carregar suas palavras.

– Vim ver um amigo. Não posso?

– Você não tem amigos, mas sim sócios e inimigos. O que você quer, cara? Fala logo, pois estou querendo trabalhar aqui.

Ele levantou-se e ficou olhando as estátuas em cima da estante. Parecia absorto naquela tarefa, como se estivesse me esquecido. Tragou novamente e me respondeu.

– Eu tenho amigos. Você é amigo. Não me quer mal e conversa comigo. É tudo o que preciso. Vim em paz.

– Para de me enrolar, porra. Se veio para conversar mesmo, pode ir embora. Adeus.

Lembro que me levantei, passei ao seu lado e me dirigi a cozinha. Peguei um copo d’água para tentar dar um ânimo, que já se esvaia no sono. Ouvi o vento fazer a janela tremer. O filho da puta ainda não tinha ido embora, e eu sabia que quando virasse ele estaria me esperando. Assim que girei, ele estava sentado na mesa no meio da cozinha.

– Tudo bem, posso ter vindo procurar meu sócio, e não um amigo. Eu posso te ajudar no problema da escrita. Posso fazer você escrever como um prêmio Nobel.

– Prefiro pedir ajuda das Musas a sua ajuda.

Voltei para a sala, e ele já me esperava lá. Lembro que sempre gostei desse truque dele.

– Eu sei que você já pediu ajuda a elas, mas não foi atendido. Esqueça essas crendices antigas, Diogo, e deixe eu lhe ajudar.

– Crendices antigas? Você é a porra de uma crendice antiga.

– Mas estou ativo no mercado. Elas não. Deixa eu te ajudar, você sabe que cumpra meus tratos.

Eu me recordava. Nas duas semanas anteriores tinha sofrido as merdas do que ele me tinha proposto. Conseguira, sem esforços, o que queria, mas sempre acabava me fodendo por causa disso. Com o diabo parecia que tudo tinha que vir com uma lembrancinha escrota e frustrante. Fora ele que inventara as reações para as ações.

– Por que você escreve? Sério, é pela fama, pelos prêmios? Dinheiro?

– Faço porque gosto. Quero inspirar e divertir as pessoas.

– Então é pela fama. Deixa eu te ajudar com isso.

– Não é pela fama. Não é tão efêmero assim.

Eu sabia, que no fundo, também era pela fama, pelo glamour da parada. Ele também sabia disso, mas não insistiu nesse ponto. Queria ganhar aquela negociação.

– Você sabe meus termos. Uma mão lava a outra. Você escreve um conto sobre mim, me põe de personagem em um dos seus livros, e eu te dou o que você quer. Simples assim.

– Porra, tá muito frouxo esse seu contrato. Eu te dou pouca coisa, você me dá o mundo. Além do que, como você vai me tornar um escritor? Vai me dar criatividade? Ou vou escrever qualquer merda e você vai me dar o que prometeu?

– Não faço milagres, você sabe disso. Você tem um certo talento, só farei esse talento se desenvolver um pouco mais. E o resto acontece naturalmente.  Editora, prêmios, Bienal e etc.

Levantei e fui para a varanda. Fiquei olhando o vazio da rua. Nenhuma vivalma passava na rua. Eu olhava para todos aqueles montes de concreto, para as enormes favelas, tentando ganhar alguma segurança. No entanto a decisão era minha, sozinho ali na madrugada.

– Como eu aceito o contrato?

O diabo levantou-se. Nunca ficava por perto depois de fechar seus negócios e antes mesmo da assinatura do contratante, ele se esvanecia.

– Escreva sobre mim. Qualquer coisa. Depois, deixe a magia do negócio fluir naturalmente.

Ele falou os seus termos e sumiu, deixando apenas o cheiro do cigarro no ar. Eu sentei no sofá, pensando na oferta. Acabei adormecendo. Pensei no acordo durante um ano. Achei melhor aceitar e assinar o contrato.

D.

Eu digo boa noite ao motorista do ônibus e lhe entrego o papel sujo e amassado para que ele me libere a passagem na roleta. Arrasto-me até o fundo do coletivo, tropeçando e empurrando as pessoas que teimam em se prostrar na minha frente. É hora do rush, o ônibus está lotado de pessoas tão cansadas quanto eu. Cansadas de seus trabalhos, suas vidas, seus amores, seu vícios, suas fodas. Tem uma velha no ônibus que eu poderia jurar que assim que ela chegar em casa ela vai se matar, tamanha é sua cara de desilusão com a vida naquele abatedouro de porcos que tem a petulância de se chamar transporte público.
Quando consigo chegar no fundo do ônibus me dou conta, pela primeira vez em muitos anos, daquela janela enorme e da vista que ela me proporciona. Quase como um televisor em alta definição, vejo os carros, a pista, as motos, de modo extremamente visceral. Chego até a abrir um sorriso só de olhar toda aquela nova diversão que me surge e acabo, embasbacado, olhando para os carros que correm ali, quase encostando na carroceria do onibus. Volto a realidade quando ouço um com licença por favor em minha orelha. Peço desculpas e dou passagem para a velha. Fico com vontade de desejar boa morte para ela, mas tenho pena, já que ela anda se arrastando pior do que eu.
Volto a olhar a janela. Me dou conta então que nunca tinha reparado aquela vista por causa das propagandas que ali costumam ficar. Quanta coisa a gente perde, falo comigo mesmo em minha cabeça. As janelas laterais do onibus agora me parecem uma merda perto daquela, dantesca. Nem preocupo-me em me sentar no lugar vago que aparece ali perto. De repente avisto um importado japonês, branco, de estrutura grande e design arredondado. Os vidros, todos filmados dão uma aura soturna aquele carro. Fico olhando ele vir, em alta velocidade na direção do ônibus. Sinto a adrenalina fazer meu coração bater um pouco mais rápido. Parece que eu estou na pista e aquele carro vai me pegar. Ele chega a quase encostar no para-choque do ônibus, antes de freiar, mas freia bem em cima, quase tirando uma lasca da tinta. Estamos parados no sinal, eu olhando aquele carro importado, quando ele me pisca as duas luzes dianteiras. Automaticamente meu cérebro encara aquilo como algo normal, o sinal deve ter aberto e ele estava indicando ao motorista para ir logo. Olho para trás, para o corredor do ônibus, e o sinal está vermelho.
O carro branco pisca novamente quando volto com minha cabeça em sua direção. O filho da puta está falando comigo, não sei que merda ele quer dizer, mas é para mim, com certeza. O onibus volta a andar e o carro branco fica então distante, parado. Viro na esquina e o perco de vista. O onibus então para em um novo sinal. Vejo o carro fazer a curva e , em alta velocidade, vir na minha direção. É isso que você quer? Ficar correndo atrás desse onibus? Faço com as mãos um movimento como se o chamasse, o convidando a vir e estourar a traseira do ônibus. Eu seria o primeiro a morrer, mas foda-se, naquele momento não me importo com isso, só quero sentir o suor escorrer pelo rosto, o coração palpitar a ponto de me fazer tremer a voz, a respiração silenciar por alguns segundos. O carro acelera, com tudo, em minha direção. Ele não vacila, não falha. Os outros carros parecem abrir caminho para ele, como se fosse um Moisés dos acidentes de trânsito. Abra-se o mar que me separa da minha terra prometida e sagrada, ele grita com aqueles pneus afundando ainda mais a rua malfeita com asfalto vagabundo. O carro freia, em cima do onibus. Ouço o grito das rodas, lamentando-se pelo fato de não terem destroçado aquele gigante.
O carro agora pisca furiosamente. É um desafio para mim. Ele quer saber até onde eu quero ir. Com as minhas mãos simulo um impacto. Ele, lentamente vai chegando perto e encosta na lataria do ônibus, como se fosse um tapa nas costas de um amigo. O filho da puta está me testando. Olho para os lados, mas ninguém percebe aquilo. O carro encostara na gente e fizera tremer um pouco o veículo, mas ninguém vira aquilo. Todos aqueles outros passageiros, presos em suas ilusões, suas loucuras, seus ataques de ansiedade e de pânico, deveriam estar em hospícios, tomando remédios, amarrados em camas. Animais idiotas, todos perdiam aquele espetáculo pois estavam estuporados em suas próprias confusões mentais.
O carro pisca as luzes novamente para mim. Eu grito que aqueles imbecis não sabem o que realmente na vida é importante, mas que ele continue o seu show, por favor. A armação de metal sorri para a mim, tal qual um monstro encarcerado que se vê livre depois de muito tempo. Aquela é sua selva, seu armário, sua planície. É sua casa. Ele respira aquela carniça queimada liberada pelos escapamentos. Ele pisca duas vezes, e eu entendo, chegou a hora do último ato. Ele deixa meu ônibus seguir. Toma sua distância, assume sua posição de ataque.
O coletivo chega no meu ponto. Nem havia reparado que havia chegado no meu ponto. Num movimento já mecânico realizado pelo meu cérebro, meus pés acabam indo em direção a porta. Fico ali, indeciso, não sabendo se escolho descer ou ficar e esperar o impacto. Vejo o carro vir. A velha, com cara de quem quer morrer me pede licença. Déjà vu. Por que essa velha de novo? Olho para minhas roupas. São outras. Quanto tempo se passou? Dias, meses, anos? Como eu estava ali, com aquela velha novamente me pedindo licença? O carro vem com tudo na direção do onibus. Eu desço, pressionado pela multidão que quer ir para suas casas e viver suas vidas medíocres. O impacto do carro com o ônibus faz com que o vidro se despedace, a lataria amasse. Eu grito, na catarse do momento. Ninguém me ouve. Ninguém repara naquilo. Meus olhos piscam e eu volto a realidade. O continuísmo está começando a me fazer ver coisas. A velha me agradece. Eu, em silêncio, dirijo-me de volta para casa. Acabou.

D.

Pergunto a Bruta Natureza, que destrói com sua força tudo que ela mesma erige:
Como foi possível moldar, da matéria rude, conjunto de átomos tão belos
que formam essa rosa de perfume doce e de vermelho puro?
Que por trás de seu rubro olhar virginal
transmutou-se no símbolo do amor e da pureza
que, mais signo de beleza não pode existir?
Rosa, do espinho que fende a carne e expõe as hemácias
que caiu na perfídias da Rosaceae, dissimulada
por trás do véu de Vênus, fazendo com que a Estética grite
no contato do sangue com a flor.
A dança do cosmo, onde estrelas de eras passadas já são supernovas,
imita as curvas e linhas finas da rosa que, com o ego desabrochado,
aproveita-se de sua beleza e faz seu encanto nos muitos olhares que
nela encaram.
Quando se despetala, na abnegação de sua própria entidade,
mesmo assim o faz com beleza, cativando a alma de quem assiste ao espetáculo.
O balé de sua corola sublimada faz qualquer um dizer que, mesmo na morte, algo mais existe.
E nesse momento, a natureza bronca e estúpida, me sorri ironicamente e diz
que a rosa é a prova de que o amor existe.
A mais rude poesia, feita pela mais rude das coisas é, então, a mais bela.

D.

Esse é uma história de amor, com uma traição e uma vingança mortal de quem foi traído.
Como um monstro colérico, a casa se desfez em sua cabeça. A laje rachando seu crânio, a viga estourando seu fêmur, o umbral esmagando suas costelas. No momento que todas as rachaduras convergiram na destruição do imóvel, ele morria soterrado em pedaços de massa, tinta, cimento, tijolos, angústia e tristeza. Antes do fechar final dos olhos, após mais de 20 minutos esperando a morte enquanto respirava terra e podridão, sentindo as dores dos ferimentos, os lapsos de memória vinham azucriná-lo enquanto ele, vendo essas recordações, arrependia-se de não ter vivido direito, e dos erros que o levariam a morte inevitável que se daria dali há pouco.
A casa era quase nova e tinha pouco tempo que mandara construí-la do nada, com a ajuda de um amigo arquiteto que fizera o projeto e arranjara os tramites para seguir com a obra. Após seis meses de construção, lá estava seu lar.
Com o carinho que se toca uma amante pela primeira vez, ele abriu devagar a porta da sala, a principal, e entrou devagar sentindo o cheiro de novidade, que nada mais é do que um misto de cheiro de tinta com plástico. Um êxtase dominou seu corpo, e ele sentiu-se arrepiado, com seus poros eriçando-se a cada passo que dava ali dentro, conhecendo cada cômodo, cada quina, cada azulejo. Após olhar e a tudo sentir dirigiu-se ao banheiro e na privada defecou. Na sua cabeça a casa só era uma casa quando se pudesse cagar dentro dela. Com carinho, cagou e sentiu-se livre. Ouvia, em toda sua loucura e deslumbramento, um coral de anjos a cantar. Chorou, sentado ali na louça branca do banheiro. Tinha um lar.
Nos primeiros anos fora mobiliando a casa aos poucos, mas conseguira um êxito formidável levando-se em conta que não tinha uma mulher ao seu lado e é sabido por todos que somente mulheres sabem decorar, devidamente, uma casa, pois a maioria dos homens tem uma tendência forte ao mal gosto e a comprar coisas que não tem real utilidade para nada, como reproduções em miniatura de super-heróis, por exemplo. Ficava mais feliz a cada tempo que passava ali dentro, como se a casa fosse a ele uma amante. A mimava, a punha para dormir, lhe falava palavras bonitas. A amava.
Num outubro frio e chuvoso, alguns anos após a construção da casa, ele resolveu ir a um Happy Hour, depois do expediente, com os amigos. E como toda história de amor e ciúmes que se preze, surgiu a Outra. Devagar e de um jeito tímido, a Outra jamais chamava atenção de ninguém na rua, mas de algum modo chamou a dele. O bar estava lotado, e Ela encontrava-se no fim do balcão, escorada na parede, e ele, numa tentativa nervosa e pessimista, foi em cima d’Ela. A troca de drinques e o oferecimento de bebidas surgiu de forma habitual e sem maiores empecilhos, e os dois embarcaram em uma conversa fluida durante algum tempo. Tudo corria bem e ele, até o fim da noite, já havia conseguido alguns beijos da Outra além de seu telefone.
Inevitavelmente, dali há algumas semanas, acabaram por se encontrar novamente. Foram para um motel, na Avenida Brasil, e consumaram o ato diversas vezes, naquela noite. Pela primeira vez em muitos anos, a casa dormira sem ninguém dentro. Sozinha naquela noite chuvosa, ela chorou e surgiu o primeiro vazamento, bem pequeno, uma bolha mínima, no teto da sala.
Ele chegou em casa, no outro dia, e entendeu o que significava aquela bolha. Falou que tinha ficado até mais tarde no trabalho e resolvera dormir lá, pois a rua era perigosa de madrugada. Pediu desculpas e falou que dá próxima vez avisaria. Nunca mais dormiu fora de casa, mas isso não impediu os seus encontros com a Outra. Passava horas fora de casa e voltava apenas para dormir e descansar. Tinha vezes que chegava no meio da madrugada. Cada vez mais dava atenção para sua casa, chegando ao ponto de até deixar de comprar móveis e embelezá-la. Pequenos vazamentos surgiam, mas em lugares escondidos, como atrás de armários, embaixo do sofá, pois a casa chorava e sofria, mas sempre escondendo a tristeza, pensando que tudo aquilo não passaria de uma fase, e que logo ele voltaria a lhe dar presentes, mimá-la e amá-la.
Um dia, no chuveiro, ele cantando uma música de amor, e a casa achando que era para ela, feliz da vida, quando ele falou o nome da Outra. A água do chuveiro imediatamente passou de fria para quente, a ponto de quase chegar a fazer queimaduras na pele do homem. E então, todos os dias passaram a ser um inferno. Discutiam, ele gritando dizendo que ela não podia lhe satisfazer todas as suas necessidades, que não lhe dava o amor em troca do que ele vivia oferecendo. Ela, abandonando de vez o choro silencioso, inundava as paredes com vazamentos, além de fazer com que as portas batessem violentamente nas noites em que ele lá dormia, chegando até a quebrar os vidros da janela, quando os dois se meteram em uma discussão que passou dos limites, onde ele chegou a agredi-la, tirando os quadros a força da parede e estragando a tinta, deixando as cicatrizes.
A situação ficou impossível de se continuar, no dia que ele chegou, com um anel de noivado na mão, dizendo que estava empacotando as coisas pois iria se mudar para a casa d’Ela. Demorou dois dias para encaixotar tudo. Na noite anterior a mudança, quando ele estava dormindo no chão, a casa resolveu dar um basta.
Ele não chegou a ouvir as vigas se dobrando. Só acordou quando a primeira porta, a do banheiro, arrebentou numa chuva de pequenas farpas de madeira. Como estava na sala, longe da porta, nenhuma o atingiu, mas o barulho foi o bastante para acordá-lo. Ele levantou-se, já com o tom de voz alto, gritando. Uma parede então estourou e ele acabou levando um direto de um pedaço de reboco na cara. Caiu de joelhos no chão, com a boca sangrando. Um azulejo então pulou do chão, acertando seu queixo e seu nariz. Abriu-se um corte, do queixo a testa, abrindo uma parte de seus lábios. Tudo começou a desmoronar, num ataque de violência do ciúmes da casa.
No outro dia, pela manhã, o caminhão de mudanças chegara, e, sem encontrar a casa no endereço citado, ligou para o homem, já há muito morto debaixo dos destroços e escombros. Sem resposta, pois o celular havia também sido destruído, eles ligaram para o segundo telefone da lista. A Outra atendeu e dirigiu-se para a rua. Viu os escombros e gritou.

D

Assim que risquei o palito na lateral da caixa o cheiro do fósforo subiu pelas minhas narinas, agredindo meu corpo e fazendo meus olhos lacrimejarem. Retornei a minha prece, de joelhos agora, com a vela na altura dos olhos. Peguei meu terço e comecei a passar, conta a conta, reza a reza. Lá pela décima ave maria ou pai nosso não tinha mais idéia exata do que estava fazendo. Meus joelhos ardiam, minha voz sumira e já fazia as preces só na minha cabeça, além da luz do Sol que há muito já dera espaço para a Lua. A única coisa que não tinha mudado era o cheiro da cera da vela, que entrava pelo meu nariz, tirando o cheiro do fósforo e impregnando nas cartilagens aquele cheiro doce.
Eu vi a cera escorrer, lenta, do topo da vela. Assim que a chama a lambia, tocando suavemente sua constituição humilde, ela virava líquido e descia mais um pouco, dando espaço para mais cera que vinha abaixo. Pensei na beleza que aquela cena demonstrava e comecei a dedicar as preces em meu rosário para aquela vela, que deixara de ser simplesmente minha luz e meu guia naquele dia, tornando-se meu motivo de viver.
O malabarismo do fogo me fascinava e não conseguia mais focar em nada. As palavras que na minha mente ecoavam já não tinham mais significado, mais sentido de existir, e minha boca balbuciava e babava as orações há muito esquecidas. Fiquei preso no tempo, naquele tempo da vela que fazia a cera escorrer, e me emocionava mais e mais com aquele cheiro. O cheiro da cera da vela fazia meu corpo suar, minhas mãos tremerem e inevitavelmente o terço caiu no chão e lá o deixei, pois já estava preso nos fascínios da vela, que tal qual uma canção de sereia me fascinava com ele.
Creio ter desmaiado durante um tempo, e então me recordo de me acordarem. Eu estava ali deitado, no chão sujo da igreja, ao lado de muitos palitos que os fiéis usavam para acender e depois descartavam no chão de concreto. Eu os olhava e tentava pensar se algum deles era o meu. Acreditava ouvir vozes que soavam baixas na minha orelha e fui voltando a mim devagar. A voz feminina perguntava se eu estava bem, o que eu respondia que sim. Levantei-me e após responder mais algumas vezes que meu estado era perfeito, me deixaram quieto. Olhei para o altar e não achei mais minha vela. Ela já havia sido consumida. Agora em minha memória tenho o cheiro da cera daquela vela, e por mais que eu acende uma todos os dias para fazer minhas orações e rezar meu rosário, nenhuma vez meu nariz pode novamente contemplar cheiro como aquele.

D

Eu decido onde tudo começa. então assim que tenho a ideia a porta abre, violenta, e eu a atravesso a passos largos, batendo logo em seguida ela atrás de mim. Sento-me em frente a mesa localizada no centro da sala, que tem em cima dela somente uma máquina de escrever e o fluxo que sai dá minha cabeça já transportasse para os meus dedos. O barulho das teclas que soam como os dentes de batendo por causa do bruxismo começa a fazer flutuar na sala as letras, uma a uma. Logo o ar já está tomado pelo conto e esses tipos formam pequenas nuvens, tornando o ato de respirar algo pesado e trabalhoso.
Logo meu cérebro não conseguirá controlar minha respiração e ela só funcionará de forma consciente, portanto eu começarei a controlar minha respiração enquanto minha psique assume o papel de controlar o conto de forma inconsciente. Não serei mais o autor dessas palavras, linhas, parágrafos.
Também não sei quem será o dono dessa propriedade intelectual. O leitor terá sua parte na construção, é claro, pois não existe conto sem leitores. As personagens talvez também assumam seu papel, em vista que através delas que se conta a história. Mas não existe um dono nessas paragens. Tudo parece ser de todos.
Controlar minha respiração é uma tarefa tão chata que durmo, sem me importar de botar minha vida em risco. Fecho os olhos por dois segundos, tempo suficiente para que eu veja pontes se destroçarem e pessoas correrem em desespero. Acordo quando uma palavra bate, violenta, em minha testa. Tenho agora um corte em meu supercílio, que sangra, de pouco em pouco, mas sangra. Em poucos minutos meu olho direito ganha uma película vermelha e começo a enxergar o mundo atrás do véu de sangue. Agora além de respirar tenho que me preocupar com os pontos que irei tomar assim que chegar no hospital.
Mesmo assim, meus dedos não param; não se importam com nada que não seja relacionada a história que digitam. Durante o processo tenho certos vislumbres do que acontece no conto. Vejo uma pessoa abrindo uma porta, fumaça e sangue. Acho que antes de cortar meu olho não havia sangue, mas sei que isso vai cair bem na história. E quando digo cair vejo que literalmente algumas gotas mancham a folha. Todo conto precisa de drama.
Vejo o tempo passar, tão lentamente que a gravidade parece não existir. Olho de relance para o chão e vejo o quanto de sangue já escorreu de meu supercílio. Creio que o corte seja maior do que pensei. Agora entendo porque respirar está tão difícil, deve estar faltando sangue em meu corpo. Na inevitabilidade da morte começo a rir alto da ironia, na qual o autor morre, mas como para tudo que morre deve nascer algo novo, vejo as letras formando o conto. Deve estar no fim, acredito eu. Por curiosidade inclino-me para frente, para ler alguma das linhas, e nisso percebo que minhas mãos nem mais se mexem, e sim a máquina de escrever que está fazendo tudo sozinha, como se meu cérebro já tivesse enviado todos os comandos necessários. Leio o primeiro parágrafo e percebo que tudo começou quando abri aquela porta. O texto não é meu, como todos da minha vida, mas com a constatação posso agora perceber. Sou imortal, mas mesmo assim, terei de morrer.

D

Aquilo sentia que talvez não conseguisse sobreviver dessa vez porque já estava naquela relação simbiótica havia diversos anos. A troca era simples: Aquilo pedia, com muito garbo e elegância, que a conífera a alimentasse. A conífera, em troca, pedia que aquilo lhe ajudasse a crescer, e assim a troca sempre parecera justa. Nos primeiros anos a conífera transbordava sua vitalidade para aquilo, mas com o tempo, conforme a conífera ia envelhecendo, as trocas eram cada vez mais dispendiosas. Aquilo chegou a alcançar tamanhos e formatos considerados bem grandes para sua espécie, nos tempos áureos das trocas com a conífera, mas agora todas as permutas eram extremamente miúdas.
Aquilo ouvira, durante muito tempo, a conífera contar sobre as suas lembranças, de eras tão antigas quanto a alvenaria e até mesmo do fogo e da roda. Como o mundo era simples, sem variações. O discurso todo soava como desilusões de um velho decadente. A única contrariedade era que a conífera não era tão velha assim e sua saudade do passado era baseada em memórias não cultivadas por ela mesma, mas sim por causa de seus antepassados, através de lembranças herdadas no código genético.
Frequentemente a conífera lembrava àquilo sobre a inevitabilidade de seu fim, e que seu tempo estava chegando. Aquilo ria, falando que ainda faltava bastante, mas no fundo um arrepio subia por seu estipe, e fazia seu píleo encher-se de preocupação. Chorava, todas as noites, seu esporos, esperando que de algum deles pudesse surgir um transgressor genético que pudesse crescer junto de alguma angiosperma  podendo assim manter seus descendentes vivos, ecoando no corredor da vida na natureza.
Aquilo, como todas as coisas naturais desse planeta, teve o seu fim, num novembro frio. Um homem, de súbito, veio e arrancou-lhe de sua terra, de sua casa. Sentiu seus micélios desconectarem da conífera, e então, de hora para outra, os pensamentos que as duas compartilhavam, simplesmente cessaram. O silêncio na consciência que aquilo pode usufruir foi uma descoberta única e talvez das mais prazerosas. Só sua voz ecoava pelo seu corpo. Só sua existência naquele ambiente. A felicidade era tamanha que aquilo nem se importou de ser fervido, e depois batido com morangos e suco de laranja, pelo contrário, desceu pelas paredes da garganta de um desconhecido disposto a dar-lhe a melhor experiência que ele pudesse vir a ter em vida. Aquilo iria lhe retribuir o favor de ter descoberto a liberdade, e iria proporcionar o mesmo a quem lhe tomara.

D